terça-feira, 27 de junho de 2017

Um mundo que não se escuta


De todas as angústias cotidianas, uma das que mais me atormenta é o barulho. Qualquer ruído representa, para mim, a privação de liberdade. Liberdade de não ouvir meus próprios pensamentos, de não desfrutar do silêncio do tempo ao passar por nós, do escorrer das horas e, sobretudo, da liberdade de escolher, eu mesma, manter-me calada e sozinha, pelo menos dentro da minha cabeça. Mas que hei de fazer, se o mundo moderno se rompe em ruídos de forma cada vez mais espantosa e desvairada? 
Pensar que liberdade é um termo associado a prisão é um tanto reducionista para uma palavra de tão amplo significado e, dentre todas as definições, fico ainda com a de Dostoiévski em seu Recordação da casa dos mortos: "A falta de liberdade não consiste jamais em estar segregados, e sim em estar em promiscuidade, pois o suplício inenarrável é não se poder estar sozinho". Para a grande maioria das pessoas a solidão tem se tornado uma verdadeira penitência, pois a enxergam como um abandono, em vez de oportunidade para autoconhecimento e evolução pessoal. Nesse contexto, é cada vez mais evidente a dor de estarem sozinhas, de não ser respondidas de forma imediata no aplicativo de mensagens, de não conseguir respostas virtuais para seus anseios compartilhados em rede, sem perceber o quanto isso pode causar dependência e o quanto pode ser prejudicial. Nascemos sozinhos e sozinhos vamos morrer. Não há como escapar desse destino implacável, nem das pessoas que diariamente, incansavelmente, turvam meus pensamentos com conversas banais sobre as quais não tenho nem demonstro o mais ínfimo interesse, mas na sofreguidão de falar, falar e falar, nada disso é notado e eu acabo não ouvindo, nem a elas nem a mim.
Não é má vontade de dar atenção ao problema alheio, é apenas desejo de pensar nos meus próprios problemas num mundo que desaprendeu a se escutar, que acostumou-se ao som inoportuno das notificações do tablet, do smartphone, dos acessórios digitais. 
Isso de maneira alguma é uma crítica ao modo como cada um vive sua vida, pelo contrário. Parafraseando Chico Xavier, "eu permito a todos serem como quiserem e a mim como devo ser"


sexta-feira, 24 de março de 2017

Esconde-esconde moderno

Quando criança, uma das minhas brincadeiras preferidas era esconde-esconde. Na década de 90, antes do advento dos telefones celulares e da tecnologia à qual temos acesso, este era um dos passatempos mais populares entre a garotada. Lembro de ficar na rua até tarde, com dezenas de primos, me escondendo e tentando achar os escondidos. Esse tempo ficou para trás porque as crianças de hoje se divertem com jogos de computador e quase nunca saem às ruas para correr, subir em árvore e se sujar como antigamente. Em duas décadas muita coisa mudou, também, entre os adultos. Inverteram-se os papéis e hoje são eles quem brincam de esconde-esconde. E quando digo "eles', estou conscientemente me excluindo, pois apesar de ter sido uma das melhores na brincadeira da minha infância, ainda não aprendi a brincar, como os adultos brincam, de esconder sentimentos.
Frequentemente me pergunto em que momento dessa trajetória entre a minha adolescência e a fase adulta, tudo isso começou a mudar, porque a impressão que tenho, às vezes, é de que acabo de sair de uma daquelas cápsulas do tempo depois de ter ficado duas décadas enclausurada e ter perdido a oportunidade de acompanhar essa... não sei se posso chamar de "evolução". Sinto como se da noite para o dia todo mundo tivesse, de repente, esquecido como se ama de verdade e qual o significado da real entrega. Hoje a brincadeira virou disputa. É uma competição para determinar quem consegue esconder seus sentimentos por mais tempo e quem sucumbe mais rapidamente ao desejo de enviar a primeira mensagem do dia.
As regras da brincadeira de esconde-esconde moderna são bem simples, apesar de absurdas:
-Não demonstrar interesse demais;
-Evitar se apaixonar;
-Em caso de paixão, jamais contar para a outra pessoa sobre seus sentimentos;
-Manter o orgulho na hora de enviar mensagens instantâneas;
-Ter uma lista de contatinhos, pro caso de não dar certo com aquele com quem você está saindo;
-Investigar as redes sociais do outro em segredo, porque abertamente viola primeira regra e,
-Em hipótese alguma fazer a linha ciumenta.

Nem preciso dizer que considero tudo isso ridículo, de uma vulgaridade sem precedentes. Eu também não saberia dizer como as pessoas ainda conseguem casar hoje em dia.
A última pessoa com quem me relacionei, e com a qual não tomei o cuidado de observar as regras do jogo de esconde-esconde moderno, me disse, em forma de crítica, que eu era muito transparente com meus sentimentos. Não apenas falava, mas demonstrava tudo o que sentia e isso, Deus do céu, isso não podia ser bom. De fato, tempos depois levei o maior pé na bunda da história da minha vida, o que me faz recordar outra característica desta competição grotesca: "você tem que ser a pessoa que termina a relação. SEMPRE." É muito importante para as pessoas sair, como se costuma dizer, "por cima". Ninguém quer ser aquele que foi dispensado. Ser dispensado não é legal, implica um sentimento terrível de rejeição com o qual esta geração não aprendeu a lidar, porque ser rejeitado significa, aos olhos das outras pessoas, ser aquele que sofre, ou seja, o perdedor. Mas quem termina o namoro vence, pois conseguiu, com sucesso, conter seus sentimentos. É isso, no fundo é tudo um jogo. Às vezes a gente perde sem nem saber que estava jogando, como aconteceu comigo.
Ontem, numa conversa trivial, uma amiga me disse: "Fui trocada por outra pessoa, mas posso culpar meu namorado por não gostar mais de mim? Claro que não! Ele tem esse direito, todos têm esse direito de seguir com sua vida quando o amor acaba" E penso exatamente assim como minha amiga. Quando uma relação acaba, não importa o motivo ou de quem partiu a decisão. Aliás, isso é o que menos importa. Então, por que as pessoas dão tanto valor a isso? Eu não quero nem saber, não me interessa. Isso é coisa de gente vazia e de gente vazia eu só quero distância. O único fator realmente relevante é que alguém, fatalmente, vai sofrer, mas assim é a vida. O que fazer? Fingir que não é contigo? Engolir as lágrimas e encher o peito de um orgulho sem sentido? Gente, para com isso! Brincar assim de esconde-esconde é alimentar um câncer. E em troca de quê? Da pose de pseudo forte sentimentalmente? Acreditem em mim. Não vale a pena.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Esta velha angústia

Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.
Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar entre,
Este quase,
Este poder ser que...,
Isto.
Um internado num manicômio é, ao menos, alguém,
Eu sou um internado num manicômio sem manicômio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos
Estou assim...
Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.
Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer —
Júpiter, Jeová, a Humanidade —
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?
Estala, coração de vidro pintado!

Álvaro de Campos
16 de junho de 1934

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

"Descalça vai pela neve..."

Comecei 2017 com o seguinte pensamento: "Ano novo, novo eu", mas sem pretensão alguma de promover grandes mudanças em mim ou na minha personalidade. O ano anterior acabou comigo lutando para resistir a muitos eventos e histórias malsucedidas e não havia outro jeito de começar 2017 a não ser... RESISTINDO. Tenho feito isso desde sempre, desde que tomei consciência de mim mesma e de minha existência no mundo. Mas vou falar uma coisa pra vocês: dói demais resistir, dói muito e machuca exacerbadamente e de uma maneira irrevogável. Mas eu nunca consegui (nem sequer me propus) ser de outra maneira. É como se resistir fosse parte da minha identidade, como se pra me sentir alguém eu tivesse que sentir dor, tivesse que amargar tantas cicatrizes só pra saber que 'tô aqui, que ainda 'tô viva. E aí apareceu a Laura, aquela filha de uma puta!
Vamos do começo. Em 2008, a trupe de teatro da qual faço parte combinou de montar um espetáculo adulto, um texto de José Sibila Barbosa chamado Proteu. É a estória de um cara que sofre de transtorno dissociativo de identidade e dentro de quem vivem vários personagens que não existem ou que fizeram parte da vida dele em algum momento. Um destes personagens é a mãe dele, a Laura, única mulher no espetáculo. Trata-se de uma mulher de meia idade, sexualmente quente, despojada, debochada, fria, egocêntrica e excessivamente sensual, sem preconceitos nem preocupações, sem pensamentos, sem metafísica absolutamente nenhuma, capaz de copular com um padre e sentir prazer pela mera constatação de estar sendo possuída pelo representante de Deus. Não há, porém, nada de chocante no comportamento dela. Para Laura tudo é muito natural, tudo é como tem que ser, ela não sofre por causa disso porque sequer toma conhecimento das próprias atitudes ou do mal que provoca. Todos os personagens, na verdade, são intensos e problemáticos e não demos conta de montar. O texto foi abandonado, mas não esquecido. Em janeiro decidimos levar Proteu aos palcos da cidade e recomeçamos as leituras.
O fato é que, após um mês de ensaio, eu não consegui ainda me afinar com ela. Foi aí que Ivan, nosso diretor, decidiu fazer uma experiência só comigo. Na última sexta feira estávamos sozinhos no teatro, mais um dos ajudantes da Trupe. Ele, Ivan, segurou minha mão e disse:
_Laura está demorando a chegar porque você resiste a ela. Não se imponha, não reaja, não se defenda dela. Se entrega, você sabe o que precisa fazer.
O caso, meus amigos, é que Laura me fez um mal danado, Laura é um laboratório vivo que encheu meu 2016 de escuridão e ira. É natural resistir ao que não te faz bem. Conversei sobre isso com Nayra, minha amiga, e ela disse "Você precisa gastar o sofrimento até não restar mais nada dele. Se você o ignora e joga lá, dentro de um baú fechado e o deixa esquecido num canto, ele não vai sair de você." Refleti sobre isso por alguns momentos, mas depois deixei pra lá. Achava que sabia como lidar com meu próprio fantasma, até perceber que lá, de dentro do baú vedado, lacrado e esquecido em algum lugar do meu inconsciente, ele me martirizava cada vez mais violentamente, tirando meu sono, meu apetite, meu ânimo e disposição para qualquer coisa que não fosse pensar nele. Laura é o meu fantasma, é o sincretismo do personagem imaginário e do personagem real, aquele que de fato existe e me atormenta. Não resistir à Laura é como se entregar à dor, no entanto não há como harmonizar essa dicotomia, por isso a resistência.
Depois de me dizer para não resistir, Ivan começou a me testar. Me colocou em duas situações pedindo que eu agisse sem pensar, que apenas entrasse no personagem. Não funcionou, eu ainda recuava. Então ele fez uma terceira tentativa. Ele colocou um boneco nos meus braços e disse que aquele era meu filho morto, que eu era mulher, sozinha, que tinha acabado de perder um filho. Demorou um pouco até eu conseguir criar dentro de mim uma atmosfera compatível com a dor que deve ser perder um filho, mas consegui. Em determinado momento dessa atividade, eu simplesmente esqueci quem eu era no meio daquele palco, esqueci quem eu conhecia e quem estava ali. Tudo se reduziu a mim e ao meu filho morto. Lembro de ter ouvido o Ivan dizer pro ajudante "Tira essa criança morta dos braços dela. Vamos enterrar." Então o rapaz veio na minha direção e me segurou tentando arrancar o boneco dos meus braços. Cara, quem disse que ele conseguiu? Eu gritei e me desesperei e as lágrimas vieram em profusão, incontroláveis. Não sei quanto tempo isso durou, só sei que quando acabou eu sentei no chão com a cabeça entre os joelhos e ainda chorei por uma boa meia dúzia de minutos. O Ivan trouxe água e o Osmir, nosso ajudante disse:
_Meu Deus do céu, nunca imaginei que você tivesse tanta força. Eu não consegui sequer te mover do lugar. De onde veio tanta fúria?
Só respondi que não sabia, que talvez não fosse eu ali no palco. De fato senti que não era, foi uma experiência maluca, foi como se eu tivesse sido possuída. Quando me acalmei estava cansada e aliviada, apesar de saber que aquilo foi espontâneo, me preocupei em entender porque não conseguia me entregar daquela maneira pra Laura. Mas eu sei a resposta. O que não consigo é aceitar que ela existe dentro de mim e encarar esse problema como algo que não vai sair na base do querer. Preciso antes reconhecer que ela está ali, me tornar amiga dela, perder o medo e então ela vai embora sem que seja preciso expulsá-la. Jung já dizia isso décadas antes de eu nascer:
"O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera. Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que atingirá sua casa sem que ele perceba. Se abandonarmos, deixarmos de lado e, de algum modo esquecermo-nos excessivamente de algo, corremos o risco de vê-lo reaparecer com uma violência redobrada."
Isso resume o que tem acontecido comigo em relação à Laura. Odeio admitir isso, mas eu sou apaixonada por ela. É preciso parar de resistir e suportar todas as investidas dolorosas de tudo que aconteceu e que está por acontecer. De uma maneira mais poética, Camões também defendia essa teoria: "Descalça vai pela neve/Assim faz quem o amor serve." Se você se propõe a amar, tem que sofrer as agruras também porque o amor tem dessas coisas. A gente precisa aprender algo relevante com o passar do tempo e eu preciso me abrir a isso.
É hora de começar a tirar os sapatos porque o caminho parece difícil. Mas eu sempre vou estar pronta pra fazer esse trajeto. 

sábado, 11 de fevereiro de 2017

O valioso tempo dos maduros

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói até o caroço.
Já não tem tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.
Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos.
Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa…
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana, que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge da sua mortalidade.
Só há que caminhar perto de coisas e pessoas de verdade.
O essencial faz a vida valer a pena.
E para mim, basta o essencial

"
O texto acima já foi atribuído a vários autores, dentre os quais Mário de Andrade, Rubem Alves e Ricardo Gondim. Não procurei verificar a quem, de fato, ele pertence, também não ando com tempo para essas frivolidades. Meu propósito é apenas disseminar sua mensagem e fazer um pedido especial. Aproveite cada uma das jabuticabas.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Qual o sentido da vida?

            Não é a primeira vez que escrevo aqui no blog sobre essa pergunta tão insondável, o que não é de espantar, visto que até hoje ninguém deu uma resposta aceitável para esse questionamento secular. Enquanto a vida vai passando, a gente não desiste, no entanto, encontrar uma explicação que nos conforte porque nós, seres humanos, precisamos de justificativa para tudo, precisamos compreender, acima de tudo, quem somos e o que fazemos aqui, questões que precisam ser refletidas de vez em quando para que não nos percamos nas areias do tempo, sob pena de, quando olharmos para trás, perceber que a vida chegou ao fim e nada de importante foi feito dela. Existe algo mais desesperador do que a constatação de que você viveu e não foi útil em nada durante todo o tempo que passou nesse plano? Por isso a gente se pergunta tanto, porque queremos que a nossa vida faça sentido, não é mesmo? 
            Essa semana uma das muitas reflexões sobre esse assunto prendeu a minha atenção. Um dos personagens da série True Detective disse o seguinte:

“Nós somos objetos que agem sob a ilusão de termos um ser, uma criação de experiência sensorial e sentimento, programados com total certeza de que cada um de nós é alguém, mas na verdade, ninguém é ninguém. A única coisa honrosa que nossa espécie pode fazer é negar nossa programação e parar de se reproduzir (...)” (True detective, season 1, episode 1)

Tais palavras me remeteram à teoria de Richard Dawkins em seu clássico O gene egoísta, que nos coloca como sendo apenas máquinas para a sobrevivência de nossos genes. Dawkins era um estudioso do evolucionismo e defendia que nós, indivíduos, somos passageiros, mas os genes são eternos e habitam nosso corpo fazendo-nos achar que somos nós que o controlamos, quando na verdade eles nos guiam como por controle remoto. O objetivo dos genes é simplesmente se replicar, garantir a sobrevivência dentro de uma máquina que será abandonada não servir mais, quando alcançar o ápice da senilidade

“Eles estão em mim e em você. Eles nos criaram, corpo e mente. E sua preservação é a razão última de nossa existência. Transformaram-se, esses replicadores, agora eles recebem o nome de genes e nós somos suas máquinas de sobrevivência.” (Richard Dawkins, O gene egoísta)

Confesso que esse discurso me parece um tanto determinista e, por esse motivo, não me agrada tanto. Porém não vou negar que as pesquisas de Richard Dawkins são relevantemente importantes e possuem seu fascínio. Eu diria até que, talvez, ela seja a explicação para a desordem que nos leva a agir como se ás vezes não fossemos nós, mas outro, atuando sobre nossa vontade. É assim que acontece, por exemplo, quando estamos apaixonados. Agimos guiados por sentimentos excessivamente emotivos, sofremos quando distantes da pessoa amada, somos plenamente felizes em sua presença e somos acometidos de toda sorte de desgaste físico mascarados de uma profunda sensação de bem estar da qual não queremos nos desprender jamais. Perdemos o sono, o apetite e a dignidade, nos tornamos ridículos em razão de nosso objeto de amor e desejamos ficar assim para sempre. Tudo culpa da Dopamina, uma substância química produzida em maior quantidade quando estamos nesse estado de êxtase. Entretanto, muitos estudiosos concordam que não é saudável se manter apaixonado por muito tempo, já que, nesse período, se deixa de viver a vida. Alguns vão além. Segundo o psiquiatra norte americano James Leckman, da universidade de Yale, é biologicamente impossível alguém se manter apaixonado por, digamos, dez anos. Ninguém aguentaria ficar tanto tempo sem comer ou dormir e isso nos dá uma dimensão de quanto poder a paixão pode exercer em nosso cérebro, portanto acredita-se que ela dure, em média, dois anos.
Mas porque dois anos? Por que não um? Ou três?
            Porque esse é o tempo médio necessário para perpetuar a espécie, ou seja, para repassar os genes para outra geração. Isso mesmo. Para alguns psicólogos evolucionistas o amor romântico, ou paixão, tal como a conhecemos, é um mecanismo criado por nossos genes para garantir a reprodução da espécie. Isso significa dizer que nossos genes (espertinhos), não podem deixar a necessidade da perpetuação à mercê da boa vontade de homens e mulheres incautos. É preciso assegurar que a reprodução aconteça, de uma maneira ou de outra, por isso surgiu a atração física, feromônios, atributos para seduzir o sexo oposto e tantas outras qualidades as quais não damos importância. Para os genes, tudo isso tem um propósito único e exclusivo: perpetuação.

            Se pensarmos em nós mesmos como imensos robôs que servem de moradia para os genes, fica difícil encontrar uma resposta para a pergunta que nos trouxe até aqui. Como em toda situação paradoxal, acho que a saída é não polarizar. Não vamos ser deterministas a ponto de nos entregar e deixar nossa existência ao acaso ao sabor da corrente, abrindo mão de escolher o bem que podemos fazer enquanto estamos aqui. Mas também não sejamos severos demais colocando nas costas a culpa por nossa vida não ser como gostaríamos. Eu prefiro pensar que a cada replicação se formam genes maiores e mais complexos e que, por esse motivo, as próximas gerações serão melhores que a nossa. Você já reparou como está o mundo lá fora? Quando tudo estiver verdadeiramente perdido, a natureza vai se encarregar de nós. E aí talvez a gente descubra que o sentido da vida é ter sentido nenhum.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Quem se importa? Quem? Quem? QUEM?

         O texto de hoje tem um objetivo claramente pedagógico e busca explicitar e esclarecer alguns aspectos referentes ao convívio entre pessoas de orientação sexual diferente. SIM, ISSO É NECESSÁRIO e, se você acha que não, leia até o final.
            Para ilustrar os argumentos que serão expostos aqui, usarei exemplos do meu cotidiano para demonstrar o que geralmente os heteros pensam a nosso respeito, não porque habitualmente sejam preconceitos ou intolerantes, mas quase sempre por ignorância mesmo, o que é ainda pior.
            Hoje pela manhã, tive uma reunião de trabalho com um grupo de pessoas muito esclarecidas. Em algum momento o assunto "identidade de gênero" no âmbito educacional foi abordado e alguém proferiu a expressão "opção sexual". Como pessoa interessada e a quem foi dado o dever de disseminar o conhecimento, alertei o meu incauto interlocutor que a variante correta é "orientação sexual". Como costuma acontecer, seguiu-se o seguinte (já esperado e previsível) diálogo:
            _Por que não posso dizer 'opção'?
            _Por que fica subentendido que isso é questão de escolha.
            _Mas é.
            Eu, ainda sem me abalar:
            _Se é, então me diga quando o senhor escolheu ser hetero?
            _Ok, se não é escolha e sim orientação, quer dizer que vocês eram orientados a ser homossexuais?
            Nesse momento eu comecei a pedir paciência a Zeus, porque já perdi a conta das vezes que tive que dar esse tipo de explicação. Eu fico parecendo a babá homossexual das pessoas que moram na Heterolândia, porque esse é um assunto tão em voga e, mesmo assim, os habitantes dessa incrível ilha insistem em ignorá-lo. Respirei fundo, já arrependida de ter levantado essa questão, e expliquei:
            _Um dos significados da palavra orientação está relacionado ao ato de regular-se autonomamente e, ao mesmo tempo, indica por qual ou quais gêneros uma pessoa se sente atraída, seja física, romântica e/ou emocionalmente.
            Ele fez aquela cara de quem não gostou nem um pouquinho e nem estava disposto a aceitar, o que de maneira alguma me espantou, já que se tratava de um militar, capitão da Polícia do Estado, um homem que visivelmente respira sua disciplina, rigor e defende a moral e os bons costumes da família cristã, já que também é um evangélico fervoroso. No entanto, o tratamento dispensado a pessoas como eu independe de crenças ou doutrinas de qualquer natureza. A profissão pode ser diferente, a religião pode ser diferente, a origem pode ser diferente, mas a ignorância é sempre igual.
            Normalmente ninguém percebe que sou lésbica assim de cara, porque não uso minha orientação como cartão de visita, não vejo necessidade. Então, quando alguém fica sabendo, invariavelmente escuto:
            _Olha, eu não sou preconceituoso. Tenho muitos amigos gays.
            Sobre essa construção eu tenho duas coisas a dizer:
PRIMEIRA: Ninguém se importa se você é preconceituoso ou não porque isso é um problema exclusivamente seu. A impressão que tenho é de que a pessoa espera que eu diga em resposta:
            _Oh, que legal que você não tem preconceito. Puxa vida, estou realmente muito contente em saber disso.
            Porém, amiguinho, se você é preconceituoso, não precisa desse tipo de justificativa, não precisa entrar na defensiva porque realmente eu não me importo e nem acho que algum outro gay se importe.
SEGUNDA: Ter amigos gays não te credencia como pessoa isenta de preconceitos. Você pode pensar que sim, mas não se engane. No âmago do seu ser reside uma personalidade que ri de piadas homofóbicas, machistas ou racistas. Há uma remota possibilidade de eu estar enganada, mas tenho sérios motivos para pensar assim.
            Em 2011, conheci uma mulher muito gente boa. Trabalhávamos no mesmo lugar e, às vezes precisávamos realizar algumas atividades juntas. Rolou uma empatia e nos tornamos amigas a ponto de conversar sobre qualquer assunto. Ela me tratava com muito respeito e havia reciprocidade nisso. Ela sabia quase tudo sobre mim e eu também sabia muitas coisas sobre ela, nunca rolou intolerância de qualquer espécie, o que me fez acreditar que nossa amizade estava consolidada. Até que, num dia qualquer em 2015, durante uma conversa sobre vícios do casamento, ela virou para mim e disse:
            _Eu gostaria muito de te ver casada com um homem. Sempre orei muito por você porque acredito que você ainda tem jeito.
            Eu nem consigo expressar com palavras o quanto fiquei impressionada com estas palavras. Cheguei à conclusão de que a gente não conhece ninguém mesmo. A amizade acabou ali mesmo, sem que nada fosse dito porque há momentos em que a gente cansa. Nesse dia eu estava cansada, sem vontade de retrucar porque sabia que seria uma tentativa infrutífera. Depois disso mudei de setor e só a vi umas duas vezes nos corredores da Universidade. Nos cumprimentamos de um jeito impessoal e foi só. Não quero perto de mim pessoas que me toleram, não preciso disso. Quero perto de mim indivíduos cujo primeiro pensamento não esteja associado à pessoa com quem eu durmo. Quero ser vista como o sujeito que sou, um elemento como qualquer outro, que paga impostos, cumpre obrigações, contribui para a construção de uma sociedade igualitária e que merece ter seu espaço respeitado e seus direitos garantidos. E não, não estou pedindo favor algum, portanto, população da ilha magnífica da Heterolândia, não aja como se eu precisasse ser grata por você não me discriminar. Não aja como se existissem categorias que merecem ser premiadas de acordo com o seu comportamento. Terceiro lugar do pódio pra quem não tem preconceito, segundo pra quem não conta piada homofóbica e primeiro pra quem, além de não ter preconceito, ainda tem amigos gays. Sinceramente, ninguém se importa!
            Pra finalizar, vão pro diabo com sua imposição heteronormativa. Chega de perguntas do tipo "Quem é o homem da relação?" Já parou pra pensar que se tivesse homem na relação estaríamos falando de um casal hetero? Chega de ficar tentando associar quem cuida da casa ao gênero feminino e quem trabalha fora ao gênero masculino. Isso, inclusive, é uma variante do preconceito que você diz que não tem. Em vez disso, procurem aprender a como manter uma relação harmoniosa e respeitosa com seus semelhantes porque isso evita muita coisa e ajuda, inclusive, a eliminar essa vergonha que você tem passado todos esses anos sem sequer se dar conta. Um abraço. Flw. Vlw.